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O tema de redação do ENEM 2015 foi pertinente e atendeu às expectativas de uma prova nacional dirigida, sobretudo, a jovens que, recentemente, concluíram o Ensino Médio e pretendem ingressar nas universidades públicas em todo o país.
Nas edições anteriores, fiz uma crítica ao tema da Imigração, pois julguei ser um assunto que envolve Direito Internacional e requeria do aluno um conhecimento maior do que ser contra ou a favor, além de ter que apresentar uma solução para o problema, o que nem mesmo os especialistas conseguem. Também critiquei o tema da Lei Seca, pois a maioria dos jovens que fazem o exame não têm a idade que lhe permita beber ou dirigir. Não que essa condição impeça o candidato de se manifestar a respeito do tema, mas são circunstâncias que atingem muito mais o “outro” e não a si mesmo.
Contrário a isso, a violência contra a mulher não é algo distante, ou seja, os candidatos já viram, ouviram, promoveram e, eventualmente, já foram agressores nestas situações. As candidatas também já viram, já ouviram, já se defenderam e, constantemente, são vítimas deste tipo de prática. Prova de que elas vivenciam esta mazela está em toda “cantada” formulada em via pública por desconhecidos, bem como encontra-se nas ruas mal iluminadas em que o medo prepondera, sobretudo, para elas. Além do mais, agrava-se no descaso do Estado quando este não atende bem suas gestantes, configura-se no salário inferior ao dos homens e, mais grave ainda, está na violência física e moral causada por seus próprios companheiros.
Era neste último ponto que os textos de apoio da PROPOSTA DE REDAÇÃO se fixavam:
O texto 1 trazia dados do Mapa da Violência de 2012, no qual se apontava um aumento de 230% no número de mulheres assassinadas no país. O texto 2 mostrava os tipos de violência e apontava a física como campeã, com o total de 51% dos casos. No terceiro, havia um texto publicitário pedindo um basta ao feminicídio e o último consistia em infográfico com resultados de 330 mil processos movidos com base na Lei Maria da Penha.
Após a leitura, o candidato, então, era convidado a fazer um texto dissertativo-argumentativo que tratasse de um aspecto intrigante que ensejou a proposta:
“A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”
Se o tema fosse reduzido à “Violência contra mulheres”, cairia no lugar comum de alguns vestibulares que, recentemente, cobram a mesma temática como o da Federal de Roraima e da Unesp-edição de inverno, ambas no ano passado e da Unigran em 2013. Os sites especializados e as escolas cuiabanas também tinham levado à exaustação este tema para os debates, no que fizeram muito bem. Entretanto, não foi a violência em si que se requeria na tese, mas o questionamento quanto à “PERSISTÊNCIA da violência contra a mulher na sociedade brasileira”.
Nesse sentido, o MEC acertou na abordagem, pois é verdade que mecanismos já foram criados para proteger a mulher. Como a própria proposta informava, hoje o Brasil conta com 52 juizados e varas especializadas; há o canal Ligue 180, criado em 2005, para receber denúncias diretas de violência desta natureza; existem em torno de 500 delegacias espalhadas pelo país, além de campanhas na TV sobre o tema. No entanto, ainda são recorrentes casos de agressão e morte.
Entretanto, pelo que os números e experiências indicam, tais medidas não são suficientes para coibir o ímpeto dos agressores, pois os mecanismos acima mencionados ainda são insignificantes frente a uma cultura milenar de vilipêndio. É certo que existem 500 delegacias, mas o que este número realmente representa em um país composto por 5.565 municípios? Frente a tantas localidades ermas, sem a presença real do Estado em vários outros setores como saúde, segurança e educação, qual a influência palpável das varas especializadas? Na verdade, “quase nenhuma”. É exatamente com base em tal ausência que o agressor se fortifica.
No entanto, ele não se fortifica apenas nesta ausência de elementos que possam puni-lo. Há maus exemplos nos quais o agressor se espelha:
1º Há dados que provam que empresários pagam menos para mulheres, o que configura uma espécie de agressão moral como se elas fossem menos capazes e, pior de tudo, aceitassem tal condição:
www.observatoriodegenero.gov.br/menu/noticias/homens-recebem-salarios-30-maiores-que-as-mulheres-no-brasil/
2º Relatos mais variados mostram como hospitais públicos e particulares exercem violência obstétrica:
3º Quem é mulher, não importa a idade, nível de formação, altura, raça, classe social, local em que vive, em que trabalha, cor e tipo de cabelo, largura de anca, tamanho do calçado, modelito, com ou sem adereço, com dente, sem dente, enfim, não importa, já ficou constrangida com o engraçadinho que mexe com ela na rua. O sujeito não é capaz de dizer “bom dia”! Ele precisa fazer comentários sobre o corpo, necessita de um “galanteio” com tom erótico; para ele, é vital ameaçar com baixarias, o que o faz um comparsa daquele que a agride em casa:
4º No serviço, muitos colegas trazem para o ambiente de trabalho os “galanteios” das ruas. Insinuam-se como se as mulheres desejassem ser tratadas com intimidade e desrespeito:
http://www.asfoc.fiocruz.br/portal/sites/default/files//2cartilha_assedio_moral_e_sexual.pdf
5º O tratamento dado a mulheres nas MÚSICAS BRASILEIRAS atuais são reveladoras da cumplicidade de “artistas” para com os agressores:
- Na música Trepadeira, do rapper Emicida, o enunciador normaliza a opressão dizendo que a mulher com quem se relaciona “Merece era uma surra de espada de São Jorge”. O motivo seria justo para ele, pois a “biscate” era uma mulher “ativa sexualmente”, pecado capital para um machista de plantão.
- A letra de uma Banda, para a qual me falta um adjetivo apropriado, exalta o estupro e coloca o agressor em uma posição em que se valoriza a agressividade como traço da masculinidade. Aviso que a leitura pode causar náuseas:
Abre a porta logo que eu quero entrar / Não adianta se esconder o Tigrão vai te pegar
(Mas eu tô com medo, você vai me machucar?)
Sou seu Tigrão gostoso só precisa relaxar / É na hora do espanto que o bicho vai pegar
- O termo pejorativo, machista, repugnante “mulherada” apareceu em 1.110.000 endereços quando tentei buscar uma música que contivesse este coletivo tão popular. Seguem alguns infelizes exemplos do uso do termo, tragicamente cantado também por mulheres:
“A mulherada tá na lancha”
“Eu sou o rei da mulherada”
“Alô, mulherada mal amada, recalcada”
“quem tá dominando tudo hoje é a mulherada/ Elas vão bebendo rebolando até o chão, mete o dedo na boquinha e o copo na outra mão...”
“Eu pego todas, sou tarado / E a mulherada gosta”
“Se você tá de deprê, está sendo mal amada/Comigo é assim:/Lapada, lapada, lapada, lapada
Alô, mulherada” (Obs.: Lapada = bofetada)
Sem dúvida, todos os elementos acima cooperam para a perpetuação da violência contra a mulher. Some-se a isso tudo as ideias que são implantadas como em “merece ou não ser estuprada”, o que soa como surreal; a romantização do tráfico de mulheres perpetrado pelas novelas brasileiras; a “curtição” em adesivos misóginos contra a Presidenta Dilma em automóveis com ampla publicação na rede.
Ademais, para mostrar por que persiste a violência contra a mulher, os candidatos poderiam fazer um breve retrospecto histórico recordando a sociedade patriarcal, o “pater poder” que consistia em o homem ser o cabeça da família, as mudanças constitucionais nesse sentido, o empoderamento da mulher que tem se tornado mais comum embora enfrente resistências.
Nesse sentido, para entender e argumentar em torno da PERSISTÊNCIA das agressões contra a mulher, poderiam usar como tese:
1 – O Brasil ainda não superou as origens patriarcais, razão pela qual persiste a violência contra as mulheres.
2 – Os homens brasileiros temem perder espaço para a mulher no campo profissional e político.
3 – O agressor desconta na frágil companheira as frustrações mal resolvidas e, como não é punido, sente-se no “direito” de persistir na prática.
4 – O agressor imita aqueles que também tratam a mulher com violência (o Estado, o empresário que remunera a mulher com menor salário, o repugnante que mexe com ela na rua, a música que trata todas como “mulherada” para quem “um tapinha não dói”). Assim, o homem agressor sente que tem o aval para, também, tratar a mulher assim.
Evidente que, para cada uma dessas teses, deve existir uma argumentação com sua adequada PROPOSTA DE INTERVENÇÃO. Deve-se destacar, ainda, que muitas outras teses podem surgir, pois tudo depende da vivência, das leituras e de posicionamentos de quem escreve. É importante ressaltar que deveria ter sido marcada a PERSISTÊNCIA e não a violência em si.
Durante a semana, recebi colaborações de INTERTEXTUALIDADES possíveis para o tema, sobre as quais passo a fazer algumas considerações. Eu mesma usei a música “Podres poderes” (Caetano Veloso) para mostrar como alguns homens ainda exercem aquele poder do passado em que “matar... são tantas vezes gestos naturais”. Mostrei como outros “poderosos” (entre eles a mídia, a qual torna a mulher objeto que consome e é consumida) atuam com seus tipos de violência e como isso faz PERPETUAR a violência contra a mulher.
Outros alunos relataram o emprego de trechos de Brás Cubas em que o desprezo pela figura feminina o fez, inclusive, tornar-se um homem solitário e arrogante. Destacando que, para o esnobe rapaz de classe alta, “há dois meios de granjear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de Europa, e o insinuativo” (capítulo XV de Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis). Não é preciso dizer que muitos homens usam o método violento na tentativa de “controlar” suas mulheres, o que lembra uma canção “Se não eu, quem vai fazer você feliz? Guerra!”. Para uns, esta é uma simples declaração de amor. Para outros, com os quais eu concordo, parece mais uma guerra para mostrar que “Se não for com ele, não será com mais ninguém”.
Houve candidatos que, para defender sua tese, recuperaram trechos do documentário “O silêncio das inocentes”, o qual retrata a história da criação da Lei Maria da Penha e da luta contra a violência doméstica e familiar. Não que tenham descrito o documentário, mas apontaram e argumentaram em torno dos problemas lá colocados e na forma de solucionar a questão.
Comparação com outras culturas também são válidas para mostrar como no Brasil se PERPETUAM situações de violência ao ente feminino. Assim, era válido mencionar quem se aproveita do rebaixamento da mulher em outros países ou em regiões dominadas pelas mais variadas crenças também, o que contribui para tal PERPETUAÇÃO. Entretanto, não se deveria deter a este fato, pois há outros mais pertinentes.
Um último ponto que gostaria de destacar é que, com um tema de fácil argumentação como este, o MEC irá se livrar de tantas notas Zero como ocorreu na edição passada. Ressalto que os candidatos que não falaram POR QUE PERSISTE a violência, com certeza perderão nota, mas não terão sua redação zerada. Digo isso para tranquilizar os inúmeros e-mails que recebi pelo site, do Brasil todo, questionando sobre este aspecto.
Em síntese, o MEC acertou na escolha do tema que, há tempos, deveria ter vindo à tona. Com certeza, nossos alunos se sairão bem, pois tinham muitos subsídios para elaboração de uma boa tese com sua respectiva PROPOSTA DE INTERVENÇÃO.
Como ressaltei em todas as turmas, devemos estar preparados para duas situações: a de aprovação e ida para a faculdade ou a de retorno ao cursinho. Enquanto não sabemos o rumo de nossas vidas, sugiro que aumentemos nosso repertório cultural com leituras variadas e faremos isso com inspiração nas palavras de Milton Nascimento/Wagner Tiso, na linda canção CORAÇÃO DE ESTUDANTE:
Coração de estudante
Alegria e muito sonho
Espalhados no caminho
Verdes, planta e sentimento
Folhas, coração
Juventude e fé
(Suzana Germosgeschi Luz – professora especialista em Teorias e Práticas Textuais: Linguagem, Metalinguagem e Epilinguagem)